quinta-feira, abril 30, 2009

O Diário e as Cenas de Violeta Segóvia - Ep. 01

Hoje faz dois meses que estou vivendo de mapa astral e Tarot. Cada mapa – R$ 100,00. Só jogo as cartas para quem me pede e não cobro. Mas saber que sua Vênus não combina com a do atual e sim com a do ex que é rico, vai para a Europa mês que vem e que ainda é louco por você – não tem preço.
Hoje de manhã fui fazer uma entrevista. Fui um tanto quanto espirituosa. Fico assim quando ouço o meu nome inteiro:

- Violeta Angélica Pinto Segóvia.
- Sim!
- Por favor, pode entrar.

Sabe que essa faculdade de administração formou uma ótima cartomante! Experiência eu tenho, principalmente que Peixes pode se ferrar na mão de Gêmeos. Até posso ouvir a minha mãe gritando lá de Pato Branco: - Você pode tratar de arrumar um trabalho o mais rápido possível sua disgramenta! Ou vou parar de mandar dinheiro pro seu cigarro.
Hoje faz dois meses que eu não fumo e que eu tô desempregada.

- Fale um pouco de você pra gente Violeta.
- Tenho 28 anos, sou formada em administração com ênfase em comércio exterior, tenho cinco anos de experiência, falo fluentemente inglês e francês e tenho conhecimento de informática avançada. – Sorrisinho

Puts, eu queria saber quem foi o corno que inventou esse negócio de dinâmica de grupo. Quem disse que brincar com um balão imaginário qualifica alguém?

- O que faz nas horas vagas, Violeta?
“Eu fumo, tomo cerveja e leio João Bidu com os pés na mesa da Renata ao mesmo tempo que vejo Márcia Goldschmidt." – Pensei.
- Aprecio muito literatura alemã, vou à academia, gosto de sair com os meus amigos e tenho como hobbie astrologia.
- Hum, interessante! E qual seu signo?
“Vou mentir. Não. Não vou”
- Sou do signo de Touro com Ascendente em Sagitário e Lua em Escorpião. – Sorrisinho!

Tinha mais três pessoas muito mais competentes do que eu. É que além do balão, teve um que se encostou num poste imaginário também. Isso deve significar uma pessoa com uma competência acima da média!

Hoje à noite, preciso terminar o mapa da Laura, senão não tenho o dinheiro da luz.
Duas vizinhas me pediram pra abrir as cartas pra elas. Acho que vou cobrar.

(Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.)

O Inquisidor do céu inflamado


Calem a boca dessa virgem!
Amarrem-na e a violentem
E prendam o leão que a defende.

Costurem a boca dessa virgem infernal!
Irrita-me a sua reputação imaculada
E os idolatras do seu pecado original.

A virgem santa puta desgraçada que
tingiu o meu céu de vermelho,
será enterrada viva
no proscênio das minhas lembranças.

E que o leão preso enlouqueça
no martírio de sua amargura.
Pois bem sei que a maldade existe na ignorância
E nos atos de loucura.

Coma

Como posso explicar através das palavras se entre mim e minha boca, existem grades de silêncio com cercas eletrificadas de censura? E se ouso tocar no maldito daquilo que não sei dizer, magôo-me com o disparo da corrente de sangue enlaçando o pescoço até ao delírio do sufocamento. Calo-me antes de qualquer movimento verbal. Este mau funcionamento das sinapses dá ordem a minha glote:
- Feche insolente. Ou queres defecar pela garganta?

Contribuo para os espasmos, abro os dicionários, reviro o passado, leio o enterrado, vomito o desgosto, rôo o osso de não ser bem-vindo ao mundo dos verbos. Faltam nervos, cérebro, abstratismo e até o romantismo que me arrancava o fôlego dos dedos. O ato não encena. Falta preparo, desapareceu o tato, falta tempero, enredo, cenário.

Passo por mim e finjo que não me vejo. Os cacos do espelho metrificam a retina. Crítica demais...
Sou alheio às minhas súplicas. São todas bostas.
Digo que não sou mais para isso e que não atendo o telefone mais nem pelas vias mentais. Estou grande, inchado. Digo por aí que morri para as sílabas. Drama de merda. Se mudo de lado, me calo. Andei vendo que este olhar só para dentro é coisa de gente egocêntrica que resolve apenas percorrer a “egobadtrip” da própria existência e que tenta ver o tudo através de lentes esgotadas as sensações mundanas. Essa gente (como eu saborosamente) que pensa que a terra é quadrada e o abismo é o logo ali que nunca chega. Que grande hipocrisia achar saber além dos conflitos reais! Que grande hipocrisia é a interpretação. Pessimismo? Não. Comédia média.
Depois de certa evolução (achismo), saco que tudo isso é uma grande ilusão de bloqueios. En-sa-colo. Procuro fugas nos becos das displicências. Fumo alheio. Jogo-me na sarjeta e juro viver numa cidade de ouro. Às vezes, dor dá e passa. Mas o que dá dor passa a alma.

- Homem – grita a voz uterina – Descostura a boca, descerra a mente, abre as pernas do coração e pari de vez esta criança pagã.

terça-feira, abril 28, 2009

A outra face da Pia Suja

Para Sarah Antunes, Sandra Antunes e André Azenha
Vamos do ralo para dentro. Levaremos todos os restos mortais das comidas não digeridas, dos processos falhos, do maldito vomitado, da congestão do avesso do ex-interior. Todos de uma só vez e talvez pela última. Por tanto tempo foi usado utensílios para atingir o inatingível, os liquidificadores com motor manual, as batedeiras batidas planetárias, os escorredores das dores, as frigideiras frígidas, as centrífugas das fugas, as facas cegas, as tantas panelas para os molhos ácidos, para os doces salgados, para as caldas escaldantes, para os cremes amargos, para inox, para alumínio, para vidro, para a anti-aderência dos queimados.
Havia todo um processo antes da pia suja. Como num ritual, a toalha da mesa era escolhida de acordo com o tema. Umas manchadas com as digitais impressas através do sangue coalhado. Outras eram de papel de seda para serem rasgadas na presença dos convidados. Outras eram de cetim vermelho, bem puta, depravada anfitriã que se servia de banquete para os ousados.
A escolha dos talheres, as pratas ou as mãos, dos luxos aos lixos, da etiqueta à animalidade. Era através dos talheres que era escolhida a forma que se deveria comer.
Os pratos eram sempre os mesmos, no formato do coração para que nunca se perdesse o romantismo e o bom humor.
As taças eram oras de cristal, oras de barro, oras nem havia, pois o gosto de se engolir a seco prevalecia. A comida, às vezes, se comia. Eram bocas, olhos, cabeças, rolas, bocetas. Eram em sua maioria órgãos pagãos embevecidos por suas próprias secreções, suor, lágrimas, gozo.
Era carnificina, era antropofagia, era canibalismo.
A pia suja se fundia em personagem e platéia. E com a coxia preparada, a mesa bem posta, as cadeiras alinhadas, a pia ensaiava.
Era visto o depois do feito, pois toda preparação é subjetiva, fica a critério dos personagens-narradores. Toda a louça suja e suas histórias. Histórias lidas através da cuia, do mármore, das torneiras. As histórias do que é celebrado, de funerais à casamentos, de dias de luto à dias de lua-de-mel. E como um ciclo de vivência, a pia suja contava a trajetória dos comuns semi-deuses e seus karmas.
Só que algo aconteceu. Algo óbvio, ao mesmo tempo que inesperado, aconteceu profunda e internamente. Na verdade, não nos damos conta dos limites, dos acúmulos, com a velha prepotência ou onipotência, achando que se pode comer qualquer um ou coisa por aí sem nenhum risco de adoecer.
As mortes, as vidas foram empurradas para o ralo, sem triturador. Os restos se acumularam, os canos entupiram e a caixa de gordura explodiu.
É de fato o que acontece quando achamos que a água e o detergente lavam o que é sempre usado de imediato e não nos preocupamos no que se passa além do que é visto rotineiramente. É melhor que se empurre tudo o que é estragado, usado torneira a baixo, limpa-se a pia e está tudo acabado. É o que é feito.
O além dos canos, hoje, é preocupante. O que faz entupir, os motivos pelos quais todos nós desejamos nos empanturrar, e festejar ou chorar e se lavar de tudo que se passou com a ilusão de que não ficam marcas no além do além que se pode ou não enxergar. Um dia o cano entope e somos obrigados a rever tudo o que foi passado metaforicamente a limpo. É preciso canalizar direito, desobstruir as passagens, tirar a ferrugem. Até porque quem não digere o que fez no passado está condenado a repetir as congestões no presente. E depois da explosão do indigesto, finalmente chega a hora de limpar o que fora escorrido e atravessar removendo os restos dos canos entupidos.

Sempre chega a hora de olhar fundo no olho do ralo e se reinventar.