quinta-feira, dezembro 17, 2009

Para Caio, Para Fernando

Deixe-me morrer com as tuas cinzas

Naufragada no teu cinzeiro da sala.

Após a minha morte eu saberei que fui tua

Pois terei percorrido o teu peito inteiro

Impregnado as tuas narinas com o meu cheiro

E amargado a tua boca com o veneno da minha loucura

Gratuita, derretida e morta após a fissura.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

O Diário e as cenas de Violeta Segóvia - Ep. 04

A putaria nunca fez a minha cabeça, me faltam experiências, mas quando se está bêbada nossos anos ficam abertos às oportunidades empíricas. A festinha de final de ano da empresa me fez lembrar dos meus e reavaliar a vidinha sem graça que ando tocando. Mapas, cartas, sorte, nenhuma vinga, chances não rolam. Engordei dez quilos nessa brincadeira. A Renata troca de namorada a cada 3 meses. Um trimestre com loira, outro com morena, outro com ruiva, até moradia pra puta rolou esse ano. Ao menos não paguei nem a metade do aluguel em troca de Victoria’s Secrets de morango para amaciar a pele muito tocada da figura trimestral da Renata. O Mário, o publicitário gostoso, pagou de meu melhor amigo. Mas melhores amigos não se comem, são conselheiros amorosos onde os meus dons de pitonisa acabam por reforçar essa minha falta de sexo fixo. Baladas solitárias, cachaça nos fins de semana, perdi a conta de quantos holliwoodianos e europeus assisti no gato da tv a cabo. Do trabalho pra internet, da internet pra cama, da internet pro sofá, da internet pro chuveiro, da internet pra masturbação, da internet pra alimentar sonhos de viagens internacionais em vão, da internet pra ilusão de um romance via messenger, da internet. Parada na mesa da pizzaria, sem graça à moda da casa, sem graça à portuguesa ou à calabresa com catupiry:

- A minha amiga secreta é reservada, não sai de casa sem um lápis no olho, a sombra combinando com a blusa, cheira a pão de mel, olhos de quem sabe tudo sobre você e o seu nome é da cor dos olhos da Elisabete Taylor! Já sabem quem é a minha amiga?! – Vozerio, exclamações e adivinhações. – É você Vi-o-le-ta!

Sorrisinho. Tive que atravessar o mar de quase trinta pessoas na mesa. A estagiária “dadinha” do escritório. Dezenove anos de bosta na cabeça.

- Brigada Fabiana! Adorei a Mandala. Vou pendurar na parede com as setes que já tenho! - a ironia escorrendo pela boca.

- De nada querida! Ah, sabe, eu não sabia o que te dar. Mas como o Mário me falou que você curte essas coisas ai de bruxaria, de magia, né, eu resolvi comprar isso. Sabe, eu nunca vi uma coisa dessas. É pra chamar energia, né?

- É. E você as chamam pelo nome, sabia? A maioria é nome de mulher. Acho que devem ser todas lésbicas! - os monges tibetanos devem estar se chicoteando a esta hora, os Maias se revirando debaixo das florestas da Guatemala só de pensar num asno daquele borrado de batom passeando com uma Mandala na rua achando ser um prato onde se sacrificam porcos para beber o sangue – pensei olhando pro presente.

Como a gente nunca sabe que presente dar, ainda mais quando você tira a mais mal comida do seu ambiente profissional, quarentona, solteira há trinta e nove anos e não sabe o que é rola desde quando tomou banho com o primo aos oito anos no chuveiro da casa da avó, resolvi dar algo relativo à miséria do contexto. Incorporei a Violeta mais simpática que habita em mim:

- A minha amiga secreta é uma pessoa muito responsável, nunca se atrasa, sempre de cabelos presos e saias longas e tem horror a fofocas. Vocês sabem o nome dela? – vozerio, exclamações e adivinhações – É você An-gé-li-ca!


- Ah Violeta, só você mesma! “Da dama à profissional - como enlouquecer um homem na cama" por Rita Cadilac! Nossa, vou aproveitar bem esse livro com o, com o... – a esta altura tinha tanta gente cascando o bico que ninguém escutou o nome do dito cujo. “Deve ser o Cosme, o vibrador falante, que ela guarda a sete chaves no criado mudo, é claro” – pensei.

E assim, um a um, foi revelado o amigo secreto e o verdadeiro self dos funcionários que se escondem atrás das relações de trabalho. Sabemos que estas festinhas são reveladoras do lado mais descontraído e pervertido da corporação. E o meu não poderia estar de fora. Depois da pizzaria, esticamos num bar. As três mais recalcadas se foram, o chefe, o supervisor e a gerente também com medo de comprometimentos, é obvio. Sobraram uns dez. A cerveja foi batendo, o povo ficou mais espertinho, mais uma caipirinha, pra mim de morango por favor, pra mim pode ser de limão mesmo, mais cerveja, os mais empolgados uísque, mais batata frita, pinga de uva e o convite foi feito:

- Gente, o Adalberto foi se embarcar. Vocês sabem que ele passa mais tempo trepado naquele navio do que em mim. A casa tá liberada. E então, vambora?

Esse é um dos motivos da minha amizade com a Josimar. Pessoa cabeça aberta, pra frente, sem frescuras. Esse nome unisex, como já falei, é só um detalhe quase que insignificante.

O Mário aceitou de pronte, a recepcionista novinha com vontades à flor da pele se intimidou, mas apoiada pelos mais velhos aceitou também. A grossa e sem noção da Patrícia deu vinte desculpas só para que insistissem. Uma pessoa de ego carente precisa de confete. A Rosi, casada e cinco filhos, alegou não demorar muito, o seu Vanderlei do almoxarifado foi mais sincero, adoro uma putariazinha formal. O rapazinho do café disse que iria ficar tarde já que são três conduções e quinze minutos a pé de volta para sua casa. Mas a Josimar ofereceu a cama do Adalberto pra ele ficar. E a estagiaria nem preciso comentar.
A sensação que tive era que aquela noite não iria prestar. Depois era sábado, tempo pra ressaca ia ter, mas pra remendar a cara de qualquer segredo comprometedor revelado, ainda mais com os colegas de trabalho, poderia acabar em chantagem ou desemprego. Deixei o pessimismo da Lua em Touro de lado, paguei a conta e fomos pro carro.

To be continued...

segunda-feira, novembro 16, 2009

Para Ana


Na união das orações
As palavras se separam
No vício do ciclo da repetição
O cansaço, o ilogismo
A punição.
Trans/pirar é um passo para enlouquecer
O par
Os pés das letras já não formam mais.
Parada no alto da represa
A alma descansa à sombra do fim
E o suor escorre no corpo nu do silêncio.

Para Cristina

A loura dos óculos fundos
Não agüentou a angústia da espera
O amor assim como ela
Aparecia e desaparecia.
Suplicou pela vida
Mas intuiu que a amada só viria
Nos braços da morte

Para César

Vou expressar a dor
Do alto
Minhas pausas, meus hiatos
São os meus bichos de estimação.

sábado, novembro 14, 2009

IDAVILA - 24ª EDIÇÃO - ANO DE LIBRA

Abalada no balancê dos tolos, ela fumava três cigarros:

Pela Busca da Intimidade;
Pela Linguagem Poética;
Pela Fé dos Desesperados.

Mas as cinzas voaram ao acaso.

E gritou: posso ser vinte e quatro balanças da dor, mas que o amor não me esqueça no contrapeso.

quinta-feira, novembro 05, 2009

O caráter poético da intimidade

A existência do ser que somos é construída através da articulação do passado, do presente e do futuro. Somos hoje diferentes do que éramos com nítida possibilidade de vir a ser outro amanhã. Com esta possibilidade, há a necessidade de se descobrir a direção, o sentido que daremos à nossa existência. O sentido aqui consiste na verdade de cada um a cada vez. Pode acontecer, que durante este trajeto do constante reencontro com nós mesmos, podemos perder o sentido ou simplesmente não encontrá-lo dificultando o fluxo do desenvolvimento da nossa existência.

O acesso a esta via que caiu em neblinas é feito através da linguagem. Não a linguagem da razão, não a linguagem usada no nosso dia a dia, mas é aquela que fala ao íntimo, que abaixa as brumas e estabelece o contato ao que ficou oculto ou aparentemente perdido: a linguagem poética.

Nesta linguagem não se faz necessária a explicação do que se quer transmitir, não é preciso a confirmação de alguém do que é expressado. Esta linguagem visa a liberdade de se comunicar, porém com a expectativa de que outro possa compreendê-la. Tal qual um poema que não precisa de explicação, da separação das palavras, do sentido de quem a escreveu. É baseada na possível compreensão de quem a leu.

Em um dialogo poético, podemos recordar fatos, pessoas, sentimentos que um dia foram muito importantes para nós. A intimidade reconecta e é onde se estabelece a linguagem poética. Podemos reencontrar a expressão do nosso modo de sentir, a alma do nosso íntimo e ao recordar, verdades surgem.

Assim, a verdade redescoberta é capaz de libertar o ser aprisionado pela falta de sentido. Através da linguagem poética é possível entrarmos em contato com o nosso íntimo, a compreensão do que faz sentido ao coração, onde este coração pode habitar novamente e reabrir a existência do ser para vir a ser sem interferências no nosso fluxo de desenvolvimento.

terça-feira, outubro 27, 2009

sexta-feira, outubro 23, 2009

A passagem

Para todos os nativos

Escorpião

Lavas renascerão entre teus seios
Assim que o convidado de honra entrar porta a dentro
Te ascenderás e a tua casa invadirá
O teu negro abismo fundo de mangue minguará com o fogo
A luz intensa te cegarás

Tu engolirás o escuro que por detrás há
para cuspir o veneno revelador
O que corroe, O que destrói,
Rapta, descerra
E à ferro marcará a tua testa
Com o que te assolas

Depois que a água se despir do cobertor de chamas
Tu poderás beber o lodo quente da dor
E desmaiar nos braços das sereias de mármore

Da pedra, o amor
Da pedra, o perdão

Do abismo ao mar de gelo
O cristal trincará ao absorver a luz da Vida Sol
Lágrimas de Fênix fecharão tuas feridas
As tuas portas de saída
E renascerás do pó

A rosa de vulcão colerás depois da passagem
E belo, renovado, prepararás as outras casas para o claro.
E será colocado a missão da revelação do oculto
Somente para ti

Ganharás nova vida se agüentares o peso do segredo
O contato com zelo
A certeza da morte por detrás dos olhos...

terça-feira, outubro 20, 2009

À Sombra da Oitava Casa

Onde me aperta a ferida?
É quase 23 de Outubro, querida!
Escorpiões vivos brotarão da minha pele
Famintos por regeneração.

sexta-feira, outubro 09, 2009

Ferro Impessoal

TUDO PASSA E
EU AINDA NÃO
PASSEI.
ENTÃO, QUERO
SER
PASSADO.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Foi-se

"A hora do crime precede a hora da
vingança, e o espetáculo continua.
cada um na sua, silêncio."
Torquato Neto



Do quente doce se fez o precipício
Na lava grossa nasceu o vão
Da transformação surgiu o medo
Aventuras, paixões, dedos
Os meus estavam nas tuas cavernas:
Mas os filhos do dia não suportam o pântano das vísceras

Pobres: andam na ilusão da luz disfarçando suas trevas.
E como réplica, a manhã se fez noite, a palavra foice
E tudo do belo oposto complementar murchou,
O sol despencou
Embalado ao som sombrio das terras que racham.

terça-feira, outubro 06, 2009

Angu de angústia

Lá embaixo existe uma boca aberta que tudo chupa e tudo quer introjetar. Come o tudo absorvendo o nada. Não gosta de dentes. Na verdade se identifica com que pensa que não projeta a fim de se livrar dos molares duros, caninos vampirescos e tem horror a quem utiliza tal arma afiada para se satisfazer: - Eu não destruo, eu não mordo, eu não faço essas coisas.
Vê-se solta, dissociada de qualquer parte. Imagina ser independente, sem corpo, sem o resto. Pensa que assim como ela, outras partes também andam soltas: seios, coxas, outras bocas. Algumas são ruins, perigosas e ao mesmo tempo em que sente medo, o medo de a qualquer momento ser atacada, fantasia que todo o bem do mundo está concentrado na parte igual e oposta das coisas. Quer se salvar. Quer novos sabores, novos prazeres, outras tetas. Sabe que a angústia significa o sem gosto, o gosto que não se tem, não se sente. Nada pior que uma boca que pensa que é o centro onde o redor não faz mais sentido. A boca não quer entrar em contato consigo e saber qual o gosto que a boca tem. Não quer saber de que cor é a sua língua, a sua saliva, não quer ver que é da natureza da boca ter dentes, morder, explorar, arrancar pedaços e se alimentar. Medo de desvelar a verdade que é só sua. E para não se sentir inchada de culpa, se cobre de desprezo. Escarra o que não vai para garganta, cospe na cara dos polidos. A boca se come para não comer. Porém, sua tolerância à dor é mínima. E assim se arrepende quando no auge do desespero da fome tudo quer pra si, tudo quer mamar além do que o seio leite pode dar. A boca é pequena, mas voraz. Quer se embriagar, por mais que negue, não quer devorar, quer degustar, por mais que cuspa quer lamber. Agradar, sentir o prazer de deixar o bom livre, de não querer tê-lo pra si, quer deixar fluir, quer se reparar, pedir desculpas, se despir da culpa. Mas não consegue parar de comer o prato do qual fez predileto - o angu da angústia.

segunda-feira, outubro 05, 2009

Pratrás

NÃO SABIA QUE CRESCER ERA PERDER AS INTIMIDADES.

quinta-feira, setembro 24, 2009

Passeio

Voltei pra casa cheia de olhos.

sexta-feira, setembro 04, 2009

Rescaldo

Essa voz quente, baixa, profunda, essa voz branca que fala ao ouvido dos anseios, inspira e suspira cada batida doída do coração. Voz de alma penada que precipita um choro sem lágrimas e ressentido de vontades soluçadas inter-caladas, mudas, perpetuando um questionário cansado de respostas vazias e sem destinação. O motivo é esse caminho de pedrarias raras, ricas percorrido somente através das projeções falidas e mentirosas da imaginação para transformar tudo o que é irreal, inatingível, impenetrável, o verdadeiro caminho de pedras concretas, pontiagudas, cinzas no belo de uma paisagem feliz.

Felicidade ologramada que quando tocada, borra-se e se desfaz por falta de carne, osso e alma. O que te faltas? O que te faltas, maldito espectro errante, para te completar e dar vida ao eco dos sonhos moribundos dentro da pele exaurindo o cheiro podre daquilo que não se tem? Diga que com a espada de samurai, mais uma vez talhada em fantasia, te corto a garganta e resgato o colorido real do tudo que dolorosamente faz acreditar.

Esquecimento é só o resto do veneno que ofereces na dose certa, aquela uma antes do encontro com a morte. E o que mais magoa é saber que ainda não matas, pois deves sentir algum prazer em saber que a tua frieza, imparcialidade e indiferença provocam sensações de impotência, aguça todos os sentimentos e alucina na tua ausência de resposta.
Mesmo diante do meu descontentamento, tu permanecerás no espectro, pois me falta força para te trazer a realidade, faltam oportunidades. E até passar a eternidade deste momento, atormentarás em todas as linguagens que conheces, para que continues a reverberar, a mover sem levantar todos os desejos que em mim ficam a esmo.

segunda-feira, agosto 31, 2009

Livre para as manifestções gratuitas de todas as contradições
Livre até o meu limite.
Sou e tenho o que transmito.
Minto, mas não me nego.
Meu ego não é cego.
E meu coração já não manca mais.

quinta-feira, agosto 20, 2009

Voragem e Volúpia

E ela disse:

- "O teu beijo é quase um estupro".

terça-feira, agosto 18, 2009

segunda-feira, agosto 17, 2009

Viagem à Virgem

Para André L. Gonçalves
“Et le temps perdu
À savoir comment
Oublier ces heures
Qui tuaient parfois
À coups de pourquoi
Le coeur du bonheure”
Sobre as tuas fotografias espalhadas sobre a cama, como num funeral sem fim, sem caixão, sem terra, sem velas, tendo como um manto a recordação de uma época em que as sementes eram gratuitas e eternas, eu estava presa.
Deliberadamente presa em uma corrente de sangue rápida, em uma freqüência frenética que dominava os órgãos da carência, da saudade, bombeando a minha glote a se fechar até dissolver com a fúria de um ácido nostálgico, contaminado minha saliva seca através de um penoso refluxo implosivo, os meus olhos de lágrimas pretas de luto por um tempo que se passou deixando as felicidades das partilhas singulares e imensamente recompensadoras.

Talvez eu pudesse voltar nesta mesma freqüência com outro sotaque, em outra língua, e provavelmente a favorita, me invadiria o espírito numa viajem astral. Eu estaria no mesmo lugar do tempo em que distraídos bebíamos, não pra ficarmos bêbados, ou soltos, mas para podermos embriagar o corpo com o álcool que a alma engolia e produzia de mim para ele, dele para mim, a embriaguez fluida, enaltecendo nossos pensamentos em caros e raros licores anímicos.
E no swing das vozes, na dança da sincronia das palavras, com o corpo das línguas, nós penetrávamos os ouvidos virgens dos nossos sons, com o fálico das sensações chegando ao clímax da cumplicidade e da igualdade.
Por que éramos iguais? Porque éramos iguais, gostávamos dos iguais, dos "invertidos" e parelhos. Éramos iguais em pureza nesses estados de troca, não importava a idade ou o tempo, ou por quanto tempo não fazíamos este tipo de sexo oral. O Sol dele estava exatamente onde me ascendia: na Constelação dos puros onde não há céu igual em claridade.

Eu sorria, eu ria, eu gargalhava com a simetria das nossas comédias trágicas, das poesias rebuscadas, das chulas e desidratadas, das músicas parafraseadas, dos bordões inventados, da bossa sem fim, da estrelinha que ele rodava nos jardins infantis das nossas piadas e do veneno quente que escorria das nossas bocas nas críticas corrosivas e sem direito de defesa que fazíamos com o humor e máscaras negras nas sombras dos abanos das aias.
E se eu ainda rio até chorar e choro até rir é porque esta viajem de ida e volta pelas primaveras e verões, se inicia sempre que deito a memória dele entre as minhas pernas abertas e sedentas de saudade.
O que foi marcado por debaixo da pele, tudo o que lembra e relembra a falta aqui no meu espaço, tão estreito e tão longe do dele, permanecerá atento a qualquer movimento, a qualquer demonstração de amor continuado através da distância e do tempo.

terça-feira, agosto 11, 2009

O Diário e as Cenas de Violeta Segóvia – Ep. 03


Acho que tudo que precisássemos deveria ser vendido no bar:
- Oi! Por favor, preciso de 25 gramas de felicidade.
- Temos em ml também.- Não, não. Quero pra cheirar mesmo. O efeito é mais rápido e não vou ficar careta por muito tempo. Em ml, o senhor me dá 30 de sabedoria, 10 de malandragem e 10 de sacanagem. Mas me dê aquelas que dão pra misturar. Sabedoria sem esses dois não é sabedoria do mundodecão.
- Acho, minha filha, que você está precisando de amor. Mas anda em falta aqueles de antigamente, dos bons, que os efeitos eram serenos e duradouros.
- Já tô levando felicidade passageira, obrigada.


Consegui um emprego. Assistente administrativo com possibilidade de ser promovida à Gerente de rola. Tiro um troco, me divirto, depois coloco o chefe tarado no pau, pago o advogado e compro um carro popular, mas 0. Precisaria comprar filhadaputice solução aquosa no boteco pra fazer isso. Me esquivo. Já percebi que tem muita gente com acúmulo de função na empresa: puta e estagiária, puta e gerente, puta e recepcionista.

Tem um carinha da publicidade, Mário Felippo, (descobri que eram com dois Ps por um email dele impresso na mesa da Josimar). Bonito, simpático, tem cara de homão, aqueles que deve ter pegada de homão, aqueles homens com cara de “faço gostoso, mas mantenha a discrição, por favor.” Cheira bem, é altérrimo, não é muito ligado a futebol e adora cinema. Informações seguríssimas da estagiária.

- Deve ser gay.
- Não bobona. Gosta de mulher, eu asseguro. Só ainda não conferi com os meus próprios olhos!
Sorrizinho.

Acho que o olho que ela quer conferir não é o convencional. Tô desesperada, mas sou nova na empresa. Josimar já deu o recado:

- Fique longe dos homens daqui. No máximo, café e cigarro na sala dos arquivos, mas nunca vá sozinha.

Ela tem esse nome unissex, mas é gente boa. Saímos pra tomar umas na sexta passada. Fica bebinha fácil, fica soltinha leve, é macumbeira, fala mal da vida de todo mundo inclusive da dela e dá em cima dos caras na cara dura com o seu 1,59m e 86 kg. Pelo o menos, ela é divertida.
No bar, pra lá de trêbada:
- Violeta, tchá con o tcheu tarot ai? Tira aaaas cartas agora e vê se eu vou darrr pra alguém hojsee.Gargalhadas.
- Então, me faz um trabalho pra eu conseguir um cara bacana, bom metedor, rico, carinhoso e fiel.
- Ihhh, quirida. Entchão, vamos terrr que fazerrr disssspacho pra Umbanda inteeeira.

Risadas e cerveja.

quinta-feira, julho 23, 2009

Concretismo: Você venceu com a sua Lógica Sentimental

Não pense. Jogue xadrez.
Com as regras do jogo sobre o tabuleiro
Delicadamente
Coma uma peça de cada vez.
Absurdo surdo
Ato calado
Mente doente
Dor de calo.
Só lamento não estar de terno
E salto alto.
A espera desespera
Deixa de ser quem sempre foi.
Do colorido à amarelada cor
Queria que o desespero não esperasse
A esperança do desamor.

quinta-feira, julho 02, 2009

Foto ou Grafia

Em uma cena onírica, eu poderia arrancar esse teu colar e a força arranharia o teu pescoço, as pérolas rolariam no instante das tuas grossas lágrimas ao ver o meu desespero em querer-te, ao ver o teu desespero ser invadido com súbita felicidade, numa mistura clássica de amor e dor com o perdão que eu já teria incondicionalmente sob qualquer ato insano que me levasse a ignorar o tempo, a distância, ressuscitando o que a vida quer deixar entre a morte de três mil ciclos de dormir e despertar o espectro de um sentimento que permanece em um etéreo paralelo como as flores de plástico nos vasos lascados dos cemitérios velando em vão o que se foi.

quarta-feira, junho 17, 2009

A dor se é a-paga-dor...

Essa idéia maluca de tirar os pêlos do caminho da felicidade com a pinça e encravar o dolorido do meu ego numa bolinha de pus no umbigo é para tentar esquecer o desleixo amargo com a acupuntura do desprazer.

sexta-feira, junho 05, 2009

Pratrás

NÃO SABIA QUE CRESCER ERA PERDER AS INTIMIDADES.

segunda-feira, junho 01, 2009

quinta-feira, maio 28, 2009

Prece à Constelação da Honra

Para Sarah Antunes
Pequena Clara,
Luz cintilante branca,
Rainha dos fios de ouro,
Divina dos sons celestes,
Estrela da redenção,
Esmeralda chave do templo do coração,
Deusa do amor último, caro, infinito.

Realiza o meu único desejo, e em teus vários nomes peço fervorosamente a fé dos teus braços, a certeza dos teus passos, o fogo da tua benção purificadora e a honra do teu ventre para que me protejas nas tuas entranhas, no meio dos teus seios, me banha e me livra de todo o mal. Que o escudo do teu leão defensor nunca se quebre em meu peito e que as suas garras cubram os meus pés. O mal temerás seu rugido.
Ungi a minha cabeça com o amor de batismo, depois de ter concedido o direito de ser tua, somente tua, a minha mais pura devoção, adoração e a incondicional missão do amar, do te amar e venerar, oh Rainha Branca, Raio do dia, me conceda a eterna luz dos Céus que habitam em ti.

Amém.

sexta-feira, maio 22, 2009

Nove mil vestidos rasgados

“Descansa. O Homem já se fez o escuro cego raivoso animal que pretendias.”
Hilda Hist


Antes de trancar a porta - disse:

- No canto da sala, eu enterrei três estrelas vivas. Quando finalmente morrerem, quero que as vista com os vestidos que costurei rasgando a minha própria pele; regue-as com o balde de lágrimas que deixei na cozinha e deixe-as expostas no jardim para secarem.

Voltarei para a Ascensão no segundo funeral.

quinta-feira, maio 14, 2009

O Diário e as Cenas de Violeta Segóvia - Ep. 02

Preciso marcar a data de hoje: faz 3 meses que eu não dou. Minha Vênus está de férias e reclama – quer trabalho.
O prédio tá em reforma e eu tô tentando parar de andar pelada pelo apartamento. Estão trocando as pastilhas de rosa para verde e já chegaram ao meu andar. Não quero me mostrar, mas eles são os três caras que mais me vêem e sinto que me desejam: os pedreiros do andaime.
Na segunda, tava tomando banho, vitreaux semi-aberto. Mas eles, a maior parte do tempo, não falam.

- Cara, cê se alembra do Jailton?
- Mi lembro, lembro! Oxe! Tá é vivo é? Mi alembro que ele caiu lá dos andjaimi e si quebrô si todo.
- Pois é. Ele tá é bem agora, mas o probrema é qui não cunsegue pegá mai muié não!
- Eita porra, mai pur causia di quê é?
- Dissi qui a mulherada não qué mar ele não por contia da estrâisse qui si ficô a perna e o braço dele, intendi?
- Êe lasqueira!
- Eu falei pra ele ih lá na zona né, acariciá o menino. Já qui tá tan difícil assim di si pegá às muié, aí só pagano, né!? - Risadas e silêncio.

E mulher que não dá há três meses faz o quê? Faz ensaio sensual e coloca no Orkut com o título: "Astróloga Gostosinha do sexo: O sexo dos Astros! Atendo com hora marcada"? Huh!
A Renata fala que qualquer dia desses, ela vai me encontrar só de calcinha, abrindo a janela e convidando os peão pra tomar um café.
Depois de ter sido corna com André e suspeitar ter sido corna com o João por me deixar em casa e ir ver filme à tarde, num sábado, na casa do melhor amigo gay da irmã dele, só me falta os caras do andaime ou virar lésbica.
Aí não, lésbica não. Adoro os meninos dos meninos demais pra lamber racha. Nada contra! Afinal, eu moro com a Renata e isso já diz em letras garrafais que eu não sou uma pessoa preconceituosa.

Mas sobre os peão... Eu posso pensar.

(Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.)

sexta-feira, maio 08, 2009

Para-Raio Queimado

Sinto-me em nuvens negras
E relampio, às vezes.
Lá do alto, o clarão me cega
Ameaço cair
Mas não chovo.

quarta-feira, maio 06, 2009

Paixão Cancerígena

Eu disse a ela:
- Sua ave de rapina do inferno, isso me agride. Deixe-me só.

E ela socou:
- Ficarei no teu estômago até que vomite ou defeque este órgão inchado.

terça-feira, maio 05, 2009

O Circo do amor

Para F.
Quem é que nunca se meteu em um picadeiro do circo do amor, vestiu a fantasia de palhaço e deixou satisfeito o público que cuidadavidaalheia?
O ingresso é de graça. Qualquer pessoa pode sentar na platéia e assistir as pataquadas da “Trupe da Batata Quente”. O preço alto é pago por quem se arrisca a usar o nariz de palhaço dentro das relações em insistir estar com alguém que não está inteiramente comprometido.

A grande piada é quando você quer muito está com aquela pessoa na qual você acha que foi predestinada a entrar no seu caminho. Esta pessoa, por sua vez, não se interessa por sua segurança, fura o tempo todo, caça os assuntos mais mirabolantes para inventar uma briga e sair para a balada mais próxima justamente com aquela amiga ou amigo que só está esperando para fechar o maior golpe e furar o seu olho. O que fazer? Vestir a calça larga e cair na risada.
Porém, não é o que acontece quando se trata de sentimento. Quem não é valorizado sofre pela falta de apreço, sofre pela carência, sofre por se sentir um grandíssimo idiota em querer alguém que caga potes para as suas sentimentalidades. Comédia trágica! Esse sentimento de menos-valia faz com que a pessoa cometa os mais insanos atos, show de ciúmes nos botecos, encenação das garrafas voadoras, viradas de mesa, teatro da rua das gritarias, tenda das lamentações, jogo das intimações enfim, tudo que irá diretamente para o circo do desamor.
E assim, depois de tanto ouvir a platéia avisar que o outro está logo atrás de você com o balde de água fria, você pensa em largar a profissão de palhaço, encarar a desilusão e tentar ser feliz. Dar um tempo para o coração, desencanar, dar-se a oportunidade de voltar a se amar e tranqüilizar a mente.

Mas acontece algo surpreendentemente anormal neste incrível picadeiro amoroso! O espetáculo não termina para a alegria do respeitável público!
De repente você, que cansou de ir para casa sozinho e rejeitado, larga a fantasia no chão e estrategicamente ou não, aquele que lhe jogava tomates na cara é surpreendido vestindo a carapuça. O seu telefone não para mais de tocar, a pessoa percebe que está jogando fora a mais preciosa oportunidade de ser feliz. Reconhece que a palhaça da história tem sido todo o tempo ela mesma e decidi lhe reconquistar de uma vez por todas. Aquele que quis, correu atrás, suplicou pelas migalhas do amor passa a não querer mais. E aquele outro que até pouco tempo não queria um relacionamento embargado volta a querer.
Palmas para aqueles que conseguem sair do palco e nunca mais voltar, pois são sábios o suficiente para entender que isso é puro truque de mágica para que o antigo palhaço volte a palhaçada. Dentro de uma relação, as pessoas envolvidas precisam estar verdadeiramente comprometidas para que o “estar junto” seja saudável e prazeroso. Caso ao contrario, todo o relacionamento vira uma grande piada cansativa e de mau gosto. Se não for o caso, se a intenção não é ter algo sério e firme, que seja logo especificado para que não banalize o sentido de querer bem o outro. Afinal de contas, o coração de ninguém é Play Center.
E que o desejo seja claro, embora não precise ser definido logo às pressas, para que não seja armada a grande lona e para que os palhaços não sejam escalados a contracenar o grande espetáculo do circo do amor – desnecessariamente.

quinta-feira, abril 30, 2009

O Diário e as Cenas de Violeta Segóvia - Ep. 01

Hoje faz dois meses que estou vivendo de mapa astral e Tarot. Cada mapa – R$ 100,00. Só jogo as cartas para quem me pede e não cobro. Mas saber que sua Vênus não combina com a do atual e sim com a do ex que é rico, vai para a Europa mês que vem e que ainda é louco por você – não tem preço.
Hoje de manhã fui fazer uma entrevista. Fui um tanto quanto espirituosa. Fico assim quando ouço o meu nome inteiro:

- Violeta Angélica Pinto Segóvia.
- Sim!
- Por favor, pode entrar.

Sabe que essa faculdade de administração formou uma ótima cartomante! Experiência eu tenho, principalmente que Peixes pode se ferrar na mão de Gêmeos. Até posso ouvir a minha mãe gritando lá de Pato Branco: - Você pode tratar de arrumar um trabalho o mais rápido possível sua disgramenta! Ou vou parar de mandar dinheiro pro seu cigarro.
Hoje faz dois meses que eu não fumo e que eu tô desempregada.

- Fale um pouco de você pra gente Violeta.
- Tenho 28 anos, sou formada em administração com ênfase em comércio exterior, tenho cinco anos de experiência, falo fluentemente inglês e francês e tenho conhecimento de informática avançada. – Sorrisinho

Puts, eu queria saber quem foi o corno que inventou esse negócio de dinâmica de grupo. Quem disse que brincar com um balão imaginário qualifica alguém?

- O que faz nas horas vagas, Violeta?
“Eu fumo, tomo cerveja e leio João Bidu com os pés na mesa da Renata ao mesmo tempo que vejo Márcia Goldschmidt." – Pensei.
- Aprecio muito literatura alemã, vou à academia, gosto de sair com os meus amigos e tenho como hobbie astrologia.
- Hum, interessante! E qual seu signo?
“Vou mentir. Não. Não vou”
- Sou do signo de Touro com Ascendente em Sagitário e Lua em Escorpião. – Sorrisinho!

Tinha mais três pessoas muito mais competentes do que eu. É que além do balão, teve um que se encostou num poste imaginário também. Isso deve significar uma pessoa com uma competência acima da média!

Hoje à noite, preciso terminar o mapa da Laura, senão não tenho o dinheiro da luz.
Duas vizinhas me pediram pra abrir as cartas pra elas. Acho que vou cobrar.

(Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.)

O Inquisidor do céu inflamado


Calem a boca dessa virgem!
Amarrem-na e a violentem
E prendam o leão que a defende.

Costurem a boca dessa virgem infernal!
Irrita-me a sua reputação imaculada
E os idolatras do seu pecado original.

A virgem santa puta desgraçada que
tingiu o meu céu de vermelho,
será enterrada viva
no proscênio das minhas lembranças.

E que o leão preso enlouqueça
no martírio de sua amargura.
Pois bem sei que a maldade existe na ignorância
E nos atos de loucura.

Coma

Como posso explicar através das palavras se entre mim e minha boca, existem grades de silêncio com cercas eletrificadas de censura? E se ouso tocar no maldito daquilo que não sei dizer, magôo-me com o disparo da corrente de sangue enlaçando o pescoço até ao delírio do sufocamento. Calo-me antes de qualquer movimento verbal. Este mau funcionamento das sinapses dá ordem a minha glote:
- Feche insolente. Ou queres defecar pela garganta?

Contribuo para os espasmos, abro os dicionários, reviro o passado, leio o enterrado, vomito o desgosto, rôo o osso de não ser bem-vindo ao mundo dos verbos. Faltam nervos, cérebro, abstratismo e até o romantismo que me arrancava o fôlego dos dedos. O ato não encena. Falta preparo, desapareceu o tato, falta tempero, enredo, cenário.

Passo por mim e finjo que não me vejo. Os cacos do espelho metrificam a retina. Crítica demais...
Sou alheio às minhas súplicas. São todas bostas.
Digo que não sou mais para isso e que não atendo o telefone mais nem pelas vias mentais. Estou grande, inchado. Digo por aí que morri para as sílabas. Drama de merda. Se mudo de lado, me calo. Andei vendo que este olhar só para dentro é coisa de gente egocêntrica que resolve apenas percorrer a “egobadtrip” da própria existência e que tenta ver o tudo através de lentes esgotadas as sensações mundanas. Essa gente (como eu saborosamente) que pensa que a terra é quadrada e o abismo é o logo ali que nunca chega. Que grande hipocrisia achar saber além dos conflitos reais! Que grande hipocrisia é a interpretação. Pessimismo? Não. Comédia média.
Depois de certa evolução (achismo), saco que tudo isso é uma grande ilusão de bloqueios. En-sa-colo. Procuro fugas nos becos das displicências. Fumo alheio. Jogo-me na sarjeta e juro viver numa cidade de ouro. Às vezes, dor dá e passa. Mas o que dá dor passa a alma.

- Homem – grita a voz uterina – Descostura a boca, descerra a mente, abre as pernas do coração e pari de vez esta criança pagã.

terça-feira, abril 28, 2009

A outra face da Pia Suja

Para Sarah Antunes, Sandra Antunes e André Azenha
Vamos do ralo para dentro. Levaremos todos os restos mortais das comidas não digeridas, dos processos falhos, do maldito vomitado, da congestão do avesso do ex-interior. Todos de uma só vez e talvez pela última. Por tanto tempo foi usado utensílios para atingir o inatingível, os liquidificadores com motor manual, as batedeiras batidas planetárias, os escorredores das dores, as frigideiras frígidas, as centrífugas das fugas, as facas cegas, as tantas panelas para os molhos ácidos, para os doces salgados, para as caldas escaldantes, para os cremes amargos, para inox, para alumínio, para vidro, para a anti-aderência dos queimados.
Havia todo um processo antes da pia suja. Como num ritual, a toalha da mesa era escolhida de acordo com o tema. Umas manchadas com as digitais impressas através do sangue coalhado. Outras eram de papel de seda para serem rasgadas na presença dos convidados. Outras eram de cetim vermelho, bem puta, depravada anfitriã que se servia de banquete para os ousados.
A escolha dos talheres, as pratas ou as mãos, dos luxos aos lixos, da etiqueta à animalidade. Era através dos talheres que era escolhida a forma que se deveria comer.
Os pratos eram sempre os mesmos, no formato do coração para que nunca se perdesse o romantismo e o bom humor.
As taças eram oras de cristal, oras de barro, oras nem havia, pois o gosto de se engolir a seco prevalecia. A comida, às vezes, se comia. Eram bocas, olhos, cabeças, rolas, bocetas. Eram em sua maioria órgãos pagãos embevecidos por suas próprias secreções, suor, lágrimas, gozo.
Era carnificina, era antropofagia, era canibalismo.
A pia suja se fundia em personagem e platéia. E com a coxia preparada, a mesa bem posta, as cadeiras alinhadas, a pia ensaiava.
Era visto o depois do feito, pois toda preparação é subjetiva, fica a critério dos personagens-narradores. Toda a louça suja e suas histórias. Histórias lidas através da cuia, do mármore, das torneiras. As histórias do que é celebrado, de funerais à casamentos, de dias de luto à dias de lua-de-mel. E como um ciclo de vivência, a pia suja contava a trajetória dos comuns semi-deuses e seus karmas.
Só que algo aconteceu. Algo óbvio, ao mesmo tempo que inesperado, aconteceu profunda e internamente. Na verdade, não nos damos conta dos limites, dos acúmulos, com a velha prepotência ou onipotência, achando que se pode comer qualquer um ou coisa por aí sem nenhum risco de adoecer.
As mortes, as vidas foram empurradas para o ralo, sem triturador. Os restos se acumularam, os canos entupiram e a caixa de gordura explodiu.
É de fato o que acontece quando achamos que a água e o detergente lavam o que é sempre usado de imediato e não nos preocupamos no que se passa além do que é visto rotineiramente. É melhor que se empurre tudo o que é estragado, usado torneira a baixo, limpa-se a pia e está tudo acabado. É o que é feito.
O além dos canos, hoje, é preocupante. O que faz entupir, os motivos pelos quais todos nós desejamos nos empanturrar, e festejar ou chorar e se lavar de tudo que se passou com a ilusão de que não ficam marcas no além do além que se pode ou não enxergar. Um dia o cano entope e somos obrigados a rever tudo o que foi passado metaforicamente a limpo. É preciso canalizar direito, desobstruir as passagens, tirar a ferrugem. Até porque quem não digere o que fez no passado está condenado a repetir as congestões no presente. E depois da explosão do indigesto, finalmente chega a hora de limpar o que fora escorrido e atravessar removendo os restos dos canos entupidos.

Sempre chega a hora de olhar fundo no olho do ralo e se reinventar.