Para Sarah Antunes, Sandra Antunes e André Azenha
Vamos do ralo para dentro. Levaremos todos os restos mortais das comidas não digeridas, dos processos falhos, do maldito vomitado, da congestão do avesso do ex-interior. Todos de uma só vez e talvez pela última. Por tanto tempo foi usado utensílios para atingir o inatingível, os liquidificadores com motor manual, as batedeiras batidas planetárias, os escorredores das dores, as frigideiras frígidas, as centrífugas das fugas, as facas cegas, as tantas panelas para os molhos ácidos, para os doces salgados, para as caldas escaldantes, para os cremes amargos, para inox, para alumínio, para vidro, para a anti-aderência dos queimados.
Havia todo um processo antes da pia suja. Como num ritual, a toalha da mesa era escolhida de acordo com o tema. Umas manchadas com as digitais impressas através do sangue coalhado. Outras eram de papel de seda para serem rasgadas na presença dos convidados. Outras eram de cetim vermelho, bem puta, depravada anfitriã que se servia de banquete para os ousados.
A escolha dos talheres, as pratas ou as mãos, dos luxos aos lixos, da etiqueta à animalidade. Era através dos talheres que era escolhida a forma que se deveria comer.
Os pratos eram sempre os mesmos, no formato do coração para que nunca se perdesse o romantismo e o bom humor. As taças eram oras de cristal, oras de barro, oras nem havia, pois o gosto de se engolir a seco prevalecia. A comida, às vezes, se comia. Eram bocas, olhos, cabeças, rolas, bocetas. Eram em sua maioria órgãos pagãos embevecidos por suas próprias secreções, suor, lágrimas, gozo.
Era carnificina, era antropofagia, era canibalismo.
A pia suja se fundia em personagem e platéia. E com a coxia preparada, a mesa bem posta, as cadeiras alinhadas, a pia ensaiava.
Era visto o depois do feito, pois toda preparação é subjetiva, fica a critério dos personagens-narradores. Toda a louça suja e suas histórias. Histórias lidas através da cuia, do mármore, das torneiras. As histórias do que é celebrado, de funerais à casamentos, de dias de luto à dias de lua-de-mel. E como um ciclo de vivência, a pia suja contava a trajetória dos comuns semi-deuses e seus karmas.
Só que algo aconteceu. Algo óbvio, ao mesmo tempo que inesperado, aconteceu profunda e internamente. Na verdade, não nos damos conta dos limites, dos acúmulos, com a velha prepotência ou onipotência, achando que se pode comer qualquer um ou coisa por aí sem nenhum risco de adoecer.
As mortes, as vidas foram empurradas para o ralo, sem triturador. Os restos se acumularam, os canos entupiram e a caixa de gordura explodiu.
É de fato o que acontece quando achamos que a água e o detergente lavam o que é sempre usado de imediato e não nos preocupamos no que se passa além do que é visto rotineiramente. É melhor que se empurre tudo o que é estragado, usado torneira a baixo, limpa-se a pia e está tudo acabado. É o que é feito.
O além dos canos, hoje, é preocupante. O que faz entupir, os motivos pelos quais todos nós desejamos nos empanturrar, e festejar ou chorar e se lavar de tudo que se passou com a ilusão de que não ficam marcas no além do além que se pode ou não enxergar. Um dia o cano entope e somos obrigados a rever tudo o que foi passado metaforicamente a limpo. É preciso canalizar direito, desobstruir as passagens, tirar a ferrugem. Até porque quem não digere o que fez no passado está condenado a repetir as congestões no presente. E depois da explosão do indigesto, finalmente chega a hora de limpar o que fora escorrido e atravessar removendo os restos dos canos entupidos.
Sempre chega a hora de olhar fundo no olho do ralo e se reinventar.